Fanfiqueira também é gente!
um artigo sobre a historia das fanfics e seu impacto na comunidade literária
O texto de hoje foi escrito pela Maria, do projeto Laboratório do Escritor. Me identifiquei muito com ela porque partilhamos o mesmo desejo por espalhar literatura por todo canto. O artigo, à seguir, falará sobre o papel das fanfics no cenário literário e usará como base o livro “Writers in the secret Garden: Fanfiction, youth, and new forms of mentoring”, das autoras Cecilia Aragon e Katie Davis, esse livro examina com profundidade como os jovens se apoiam e aprendem juntos nas comunidades online.
A gente sabe que tem muito preconceito com quem escreve fanfics, mas acreditamos que uma forma de quebrar preconceitos é conscientizando as pessoas sobre como os espaços funcionam e os benefícios que trazem, como por exemplo, todo o aprendizado e socialização entre jovens escritores. O Portal Cataprisma apoia os novos contadores de histórias e está comprometido em fazê-los serem vistos.
“Às vezes, me pergunto se teria sido diferente em minha própria vida, e quiçá na vida de muitos outros, se tivéssemos tido acesso a essa comunidade solidária de milhões de jovens e sua mentoria distribuída quando éramos crianças.”
Cecilia Aragon é uma autora premiada e professora de engenharia na Universidade de Washington.
Sabe quando você se sente inspirado depois de acabar uma saga e dá aquela vontade de explorar ou até evoluir o enredo da obra? Essa vontade toda pode resultar na criação de fanfics, histórias escritas baseadas em obras famosas mas feitas por fãs. Os ficwriters (termo que se refere a quem escreve fanfics) criam novos universos expandem a história em novos pontos de vista, tornando personagens secundários em protagonistas, juntando casais improváveis ou até misturas entre duas obras que o autor goste (crossovers). Todas essas ideias vêm de perguntas como “o que acontece depois?” ou “o que poderia ter acontecido?”.
Geralmente postadas em plataformas online, como Wattpad e Spirit Fanfics, as fanfics unem a comunidade de ficwriter, que se reúne para divulgar suas obras e trocar ideias. Ato que possibilita o exercício da criatividade e a inserção do escritor na internet, já que não é necessário muito investimento para se tornar um ficwriter.
“É como se você não estivesse sozinho no barco, há um autor por trás te ajudando a remar, e quando você vê, fazer viagens sozinho não é mais tão assustador”.
As fanfics surgiram muito antes da popularização da internet pelo mundo. A ideia de histórias criadas por fãs começou a aparecer nos anos 70. Tudo por meio das fanzines (ou fan magazines) que são publicações não oficiais, produzidas e editadas por fãs e entusiastas, assim reunindo informações, curiosidades e até mesmo fanfics. Tudo passado de fã para fã.
Com a propagação da internet, o exercício de “fanficar” se tornou mais fácil para os fãs. Em sites ou até em blogs, a comunidade dos ficwriters só aumentou, assim como a quantidade de criações. Uma das primeiras plataformas criadas especialmente para fanfics foi o FanFictionNet, fundado em 1998. No Brasil, a primeira plataforma oficial foi criada em 2005, chamada por Nyah! Fanfiction.
“A fanfiction pode perfeitamente servir de laboratório para novas vanguardas literárias, e de fato vem incorporando esse papel ao subverter antigos gêneros literários e criar novos, sendo uma ferramenta de liberdade estética e de estilo para que escritores amadores alcancem espontaneidade”
Há um grande preconceito quando o assunto é o universo das fanfics. São consideradas histórias amadoras ou algo de fãs obcecados que não devem ser levados a sério. Um ficwriter nem sempre é reconhecido como escritor, muitas vezes por escreverem sobre obras já desenvolvidas ou por publicarem em plataformas online e não ter um livro publicado fisicamente. Falar que um livro ou conto “parece até fanfiction” ainda é uma forma de desmerecimento e depreciação, mesmo que várias histórias criadas por fãs sejam melhores que livros publicados e famosos.
A questão é que as fanfics são muito mais que “historinhas” escritas por fãs. Elas contribuem de diferentes formas no desenvolvimento dos jovens escritores, principalmente pré-adolescentes e adolescentes que começaram a aventurar-se no mundo da escrita.
Em um livro chamado “Writers in the secret Garden: Fanfiction, youth, and new forms of mentoring”, Cecilia Aragon e Katie Davis argumentam sobre a ideia de que um ficwriter pode se tornar um bom escritor, fato que se reflete na construção de uma comunidade onde os jovens escritores possam interagir e trocar conhecimentos. A prática de escrever fanfics pode trazer diferentes benefícios como:
Aumento da criatividade ao exercitar mudanças em uma história ou universo já criado.
Melhora a ortografia através do corretor automático, pelo feedback de leitores da própria plataforma e a partir do interesse do próprio escritor.
Melhora no enredo e construção de narrativa através do feedback e hábito de leitura.
Possibilidade de criar histórias com mais diversidade e representatividade (ao inserir a realidade do escritor dentro de histórias hegemônicas).
Estímulos para jovens escritores (não há uma idade certa para começar a escrever).
Possibilidade de futuras publicações, sejam independentes ou tradicionais (olheiros sempre estão presentes nas diversas plataformas).
“Para os nativos digitais, é fácil ter acesso a esse tipo de texto, mas para as pessoas que têm pouca familiaridade com o universo on-line e com a cultura pop, a situação é diferente. Um dos objetivos da minha pesquisa de mestrado foi apresentar esse tema a acadêmicos e a professores, e a recepção foi excelente. O que falta, além de mais divulgação, é as pessoas perceberem que fanfic não é só um entretenimento jovem. É uma complexa prática de letramento, de desenvolvimento de leitura e de escrita. O meio acadêmico está cada vez mais receptivo ao uso de tecnologia na educação, então a tendência é que a fanfiction deixe de ser vista apenas como um passatempo, sendo mais estudada por pesquisadores.” - Stella Hadassa
No fim das contas, mesmo que em um primeiro olhar as fanfics parecem brincadeira de adolescente, elas são na verdade um processo constante de atividade artística e criativa que utilizam-se da narrativa para criar mundos, mudar mundos, discutir padrões etc, etc, e etc.
Para finalizar, segue uma lista com obras e adaptações que começaram como fanfics:
Cinquenta Tons de Cinza (2011), da E. L. James, que era uma fanfiction da Saga Crepúsculo (2005), da Stephenie Meyer;
After (2014), da Anna Todd, que era um romance com o cantor Harry Styles, ex-integrante da Boyband One Direction;
Orgulho e Preconceito e Zumbis (2009), de Seth Grahame-Smith, que era uma fanfic de Orgulho e Preconceito (1813), obra de Jane Austen
Cassandra Clare, que escrevia fanfics de Harry Potter (1997) antes de criar uma história e um universo original, conhecido como Os Instrumentos Mortais (2007), uma série literária de fantasia e ficção que já possui adaptações em filme e série.
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O Portal Cataprisma não brinca em serviço.
Além do artigo, também conseguimos uma breve entrevista com a escritora Ruby Raiff, que nos contou sobre sua trajetória na literatura desde os primeiros anos em comunidades de fanfiction até os dias de hoje, onde se dedica a criar conteúdo sobre livros nas plataformas digitais, enquanto trabalha em seus originais.
Tête-a-tête com a autora Ruby Raiff
“A literatura se tornou algo intrínseco na minha vida por causa das fanfics. Escrevê-las me deu a oportunidade de testar diversos estilos de escrita”
— Ruby Raiff
Ruby Raiff é o pseudônimo que ela escolheu como escritora e influenciadora, em homenagem à sua avó, a pessoa que a introduziu ao mundo da literatura. Ruby adora ler e escrever sobre universos fantásticos, mas aprecia ainda mais quando consegue encontrar e abraçar as sombras dentro dessas fantasias. Ela espera alcançar e inspirar pessoas que compartilham essa visão.
Fale um pouco sobre seu envolvimento com a literatura
Sou autista com diagnóstico tardio e comecei na literatura escrevendo antes mesmo de ler propriamente. Fui alfabetizada em casa pela minha mãe e, aos três anos, já sabia ler e escrever.
Apesar de alguns erros de português, eu escrevia e lia muito bem.
A ideia de começar a escrever veio da minha avó, quando eu tinha seis anos. Eu inventava muitas histórias, mas não tinha habilidade social para contá-las às outras crianças, que me achavam estranha por causa disso. Minha avó sugeriu que eu escrevesse as histórias em vez de contá-las, e foi o que fiz.
Eu nem sabia o que era fanfiction, pois isso foi no início de 2004 e eu tinha apenas seis anos (risos). Não tinha acesso ao Orkut nem à internet. Eventualmente, aos oito anos, tive acesso ao Orkut e descobri o que significavam direitos autorais (risos). Compreendi então que nada do que eu escrevia poderia ser publicado.
Por volta dos dez anos, pesquisei no Google “A Filha de Voldermot” e apareceram dezenas de links. Foi quando conheci o site Nyah! Fanfiction, que se tornou minha porta de entrada para a literatura.
Comecei a publicar minha primeira fanfiction online aos 11 anos e consegui um bom público, mesmo nos anos iniciais. Mais ou menos na mesma época, o filme Crepúsculo estava viralizando. Lendo uma revista Capricho, descobri que havia um livro da saga que não seria adaptado: “A Breve Segunda Vida de Bree Tanner”, de Stephenie Meyer. Fiquei absurdamente incomodada por não poder conhecer essa parte da história. Então, comprei o livro. Depois disso, meu pai me deu os outros livros da saga Crepúsculo.
Continuei escrevendo fanfics por todos esses anos, não apenas sobre Harry Potter, mas também sobre diversos outros universos que eu gostava, como Naruto e HQs da Marvel. Tenho livros originais também, mas ainda não os publiquei.
Hoje em dia, não leio mais fanfics, mas a literatura se tornou algo intrínseco na minha vida por causa delas. Escrever fanfics me deu a oportunidade de testar diversos estilos de escrita.
Como foi a experiência de publicar suas primeiras fanfictions e ter gente te consumindo?
Eu era bem jovem, então não compreendia direito todo o conceito de publico. Não compreendia que tinha pessoas que liam absolutamente tudo que eu escrevia. Para mim, responder os comentários era como fazer amigos.
Até hoje, adoro responder comentários e entrar na onda das teorias.
Uma das minhas melhores amigas atualmente foi leitora das minhas fanfics de Naruto quando tinha sete anos de idade.
Conforme fui ficando mais velha, comecei a entender o peso daquilo, mas nunca fui muito de participar de fandoms ou grandes grupos da comunidade. Para mim, meu mundo de leitores era meu grupo particular de amigos.
Hoje em dia, entendo melhor o impacto do que faço, mesmo que seja apenas fanfic, por conta de alguns relatos extremamente emocionantes que já recebi. Muitos leitores se abrem por se identificarem com as questões abordadas, e isso os ajuda a lidar com suas próprias questões. Mas nem tudo foram flores, e vejo isso claramente hoje.
Coloquei muito de mim mesma nessas histórias. Muitas das coisas que vivi não foram leves, e eu definitivamente não tinha maturidade para escrever sobre aquilo com responsabilidade. Eu era nova, tinha 15 ou 16 anos.
É doloroso olhar para trás e pensar que foi a escrita que me manteve respirando, e que muitos adolescentes leram minhas fanfics e enquanto viviam seus próprios traumas junto comigo.
Algumas dessas histórias estou reescrevendo, abordando os temas com mais responsabilidade. Não quero apagá-las, pois fizeram parte da minha vida, então quero que sejam apresentadas de forma mais adequada.
Me conta quais são as principais temáticas que você trabalha nas suas narrativas?
Eu trabalho muito com a ideia de que as pessoas são imperfeitas. Sou extremamente cética quanto à bondade humana, e não há pessoas boas nas minhas histórias. Na maioria delas, não existem heróis ou vilões no sentido clássico.
Também abordo muito o amadurecimento e o autoconhecimento. Algumas das histórias que comecei na adolescência passaram por longos hiatos, e agora estou conseguindo concluí-las na vida adulta. Isso me dá a oportunidade de escrever sobre amadurecimento, autoconhecimento, primeiros amores, família e luto.
Gosto de subverter gêneros e criar personagens femininas que não são salvas. Nem sempre elas conseguem salvar a si mesmas também; elas aprendem a navegar pela sobrevivência.
Minha inspiração para escrever vem muito dos contos de fadas, eventos históricos e diferentes culturas de suas mitologias.
Acho que o tema mais recorrente é: todos nós somos heróis da nossa própria vida e também vilões na história de alguém. E as duas coisas podem estar corretas simultaneamente.
Qual você acha que foi sua maior evolução como escritora?
Minha escrita melhorou muito depois dos meus 15 anos, tanto pela idade quanto pelo aumento do meu hábito de leitura. Vim de um contexto familiar complicado e, naquela época, já não tinha mais uma rede de apoio. Comecei a conhecer outros escritores e alguns leitores um pouco antes disso, e eles se tornaram minha nova rede de apoio.
Nessa mesma época, trabalhei com dois betas voluntários do Nyah! Fanfiction, que me ajudaram MUITO a evoluir minha escrita. Trabalhar com betas e ter uma rede de apoio composta por leitores e outros escritores foi, sem dúvida, o que mais me ajudou como pessoa e como autora.
Dando uma passeada pelas suas redes, a gente vê como você têm atuado como influenciadora. Como foi essa aproximação com criação de conteúdo literário no digital?
Foi bem acidental, na verdade. Antes da pandemia, trabalhei como modelo e atriz na adolescência. Na época, uma fotógrafa com quem eu estava para fazer parceria acabou se tornando uma amiga querida.
Ela fazia parte de um grupo de pessoas que se conheciam do Musical.ly, que precedeu o TikTok, e estava se tornando bem famosa no TikTok também, porque suas produções audiovisuais eram realmente fenomenais.
Nós saímos de férias juntas, conversamos muito, e ela acabou me convencendo a produzir vídeos para o TikTok. Me diverti fazendo algumas gravações e, um dia, fiz brincando alguns vídeos falando sobre livros. O algoritmo fez o resto. Descobri o BookTok; eu não sabia que a comunidade literária no TikTok era tão grande.
Então, hoje atuo e busco cada vez mais trabalhar como influenciadora de livros.
Já fiz algumas parcerias pontuais com editoras como a Galera Record, Suma e Plataforma 21. Mas só foquei no Bookstagram de verdade em 2024, quando tive um salto significativo de seguidores.
Pretendo falar mais sobre escrita quando lançar meu primeiro livro original, que deve acontecer, se tudo der certo, até o final do ano que vem.
Artigo por Maria do Laboratório do Escritor
Entrevista por Filipo Brazilliano
Curioso que, no reino dos quadrinhos, a ideia de produzir em cima de obras alheias sempre foi normal — o desejo de revitalizar uma personagem ou trabalhar numa Graphic Novel. Neil Gaiman, reconhecido autor multifacetado, fez "fanfic" com Eternals ou sua participação em Spawn. Ou se for pago já não tem preconceito? Sempre achei muito estranha essa diferenciação de "canon" e "história alternativa". É tudo ficção, oras.
Fanfic é realmente uma parte crucial da nossa cultura atualmente. Conheço diversas pessoas que começaram com fanfic e hoje escrevem originais.
Eu mesma tinha vontade de escrever algumas, mas infelizmente ainda não tive tempo e tenho dificuldade de trabalhar com personagens de outras pessoas.