“A arte queer desafia construções sociais que marginalizam as identidades que fogem da regra, transformando o que é visto como estranho em símbolo de liberdade.” - Lucas Santana
Há momentos em que a gente é confrontado com comentários ou atitudes que expõem, com todas as letras, o quanto ainda vivemos numa sociedade marcada pela LGBTfobia.
Recentemente, me vi em situações em que consegui responder, argumentar, dizer algo que talvez fizesse alguém pensar duas vezes antes de repetir certos absurdos. E isso me despertou a vontade de estudar o tema ainda mais a fundo. Como essa é uma newsletter dedicada à literatura, decidi transformar essa inquietação em texto e abrir com vocês uma conversa sobre literatura queer. Quero explorar como a contravenção da norma aparece nas obras de pessoas autoras que escrevem a partir de vivências dissidentes, pensar o que significa criar personagens abjetos, inumanos, e como tudo isso se relaciona com a estética queer e a própria origem da Teoria Queer, descobrindo no processo quem está fazendo isso na literatura independente do Brasil de hoje.
Para abrir essa conversa, partimos das reflexões do jornalista e escritor Tales Gubes, criador do coletivo Ninho de Escritores. Em sua análise no youtube, Tales nos convida a pensar além da superfície do termo “queer”, palavra que, originalmente usada de forma pejorativa, significando em inglês “estranho” ou “esquisito”, foi ressignificada a partir da década de 1990 por ativistas e teóricos como uma forma de subversão e afirmação de identidades dissidentes.
A Teoria Queer surge nesse cenário como uma proposta crítica às normas que moldam nossas ideias de identidade e pertencimento. Seu ponto de partida mais reconhecido é o livro Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity (1990), de Judith Butler, filósofe não-binárie e pensadore da filosofia pós-estruturalista. A obra propõe um debate sobre como certas convicções sobre gênero são construídas, reforçadas e naturalizadas pela sociedade, e o debate nos leva a repensar o quanto os papéis de gênero são performativos, ou seja, produzidos e reiterados por meio de práticas sociais. A teoria queer também se apoia em contribuições anteriores, como os estudos de Michel Foucault, principalmente em seu livro História da Sexualidade (1988), além dos estudos feministas e das pesquisas de ativistas gays e lésbicas que já vinham questionando os limites normativos da identidade muito antes disso.
Nos estudos de Foucault, especialmente em Vigiar e Punir (1975), compreendemos que o conceito de “normalidade” é produzido historicamente por estruturas de poder. O que se entende como “normal” muda conforme o tempo e o contexto, sendo definido por mecanismos sociais que moldam nossa percepção do mundo. Uma vez naturalizado, esse conceito torna-se difícil de contestar, pois passa a operar de forma invisível, regulando corpos, desejos e modos de vida.
A normalidade é uma ficção compartilhada
No campo da literatura, a crítica queer investiga como os textos constroem ou desconstroem as noções de identidade, como resistem ou reproduzem estereótipos, analisando não apenas os personagens ou os enredos, mas os próprios modos de narrar: quem conta, de que ponto de vista, quais símbolos e elementos, e quais formas de escuta essas vozes evocam.
Ao problematizar as ideias de “normalidade”, a Teoria Queer desestabiliza categorias binárias como homem e mulher, homo e hetero, propondo uma leitura da experiência humana como algo múltiplo. E, como nos lembra Tales, “[…] a experiência humana, por definição, escapa dessas amarras. Ela é imperfeita, inexplicável, inenarrável”. E isso se apresenta como um desafio para a literatura, que é justamente o exercício de dar forma a vivências, inclusive aquelas que fogem do que é considerado normal pela sociedade.
“O que eu entendo propriamente como literatura queer está mais relacionado a questionar, estranhar e atacar lugares comuns do que simplesmente trazer esses lugares pro palco”, diz Tales Gubes.
A Teoria Queer nos convida, portanto, a desconfiar dos moldes e dos papéis prontos. Não bastando apenas colocar personagens LGBTQIAP+ em destaques nas páginas, mas também romper com as formas tradicionais de contar histórias. “O queer está na ação”, afirma Tales. “É um lugar de potência, de incerteza, um espaço curto de disputa sobre o que as coisas estão significando e o que elas ainda podem vir a significar.”
A provocação que o jornalista faz vai além da representatividade. Para ele, literatura queer não é só uma questão de trazer à cena personagens dissidentes, mas de tensionar os próprios mecanismos de construção narrativa.
“Vilões e monstros são (quase) sempre abraçados como representações queer por serem o desvio, a mancha, os excluídos, os indesejáveis, o que se deve esconder e apartar da sociedade feliz e perfeita” - Comentário de Auryo Jotha, escritor de ficção especulativa e apresentador do podcast Covil do Terror
A reflexão do escritor Auryo Jotha ressoa com força quando pensamos nas formas como pessoas LGBTQIA+ foram e continuam sendo retratadas nas artes narrativas, especialmente no cinema e na literatura. A associação entre desvio e monstruosidade não é nova e, muitas vezes, o que parece apenas uma construção estética carrega em si códigos sociais profundamente excludentes.
É nesse contexto que surge o conceito de queer coding, ou código queer, tema central do artigo “O Mito do Vampiro e queer coding em Carmilla de Sheridan Le Fanu”, escrito pelas pesquisadoras Ana Maria Leal Cardoso e Pâmela Sampaio Teixeira e publicado na revista Ponta de Lança: Revista Eletrônica de História, Memória & Cultura. As autoras explicam que o queer coding se refere a uma estratégia narrativa na qual personagens são associados à comunidade queer de forma indireta, por meio de maneirismos, estilos de vestir, trejeitos ou outros marcadores simbólicos, mesmo sem uma declaração explícita de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Essa codificação implícita surgiu, em grande parte, como resposta a contextos de censura ou repressão.
O youtuber Jonas Maria, em vídeos de seu canal, aprofunda essa discussão ao relembrar o período entre as décadas de 1930 e 1960, quando vigorava o chamado Código Hays, um conjunto de diretrizes morais que regulava o que era permitido exibir nos filmes de Hollywood. Dentre diversas proibições, estava vetada a presença de personagens abertamente homossexuais. Para driblar a censura, roteiristas e diretores passaram a inserir elementos de queer coding em suas narrativas, criando personagens que, embora nunca se declarassem LGBTQIA+, carregavam atributos reconhecíveis pelo público, desde que não o bastante para levar o filme à rejeição pelos censores.
Jonas Maria é direto ao afirmar: seria ingenuidade pensar que essas codificações nasciam de uma intenção inclusiva. Ao contrário, muitas dessas representações serviam para ridicularizar ou vilanizar tais personagens, vinculando sua suposta “desviança” sexual à corrupção moral. Ainda que personagens queer acabassem sendo ressignificados posteriormente por leitores e espectadores LGBTQIA+, os estereótipos construídos nesse período continuam a influenciar representações midiáticas até hoje.
Ana Maria Leal Cardoso e Pâmela Sampaio Teixeira reforçam esse argumento ao citar pesquisas contemporâneas que analisam como o queer coding opera em vilões da cultura pop. Um exemplo é o trabalho Unmasking the quillain: queerness and villainy in animated Disney films, de Dion Sheridan McLeod (2016), que aponta como personagens como Úrsula (A Pequena Sereia), Jafar (Aladdin), Capitão Gancho (Peter Pan), Gastão (A Bela e a Fera) e a Rainha Má (Branca de Neve) incorporam estereótipos de gênero e sexualidade que destoam da norma heterocis, reforçando sua caracterização como ameaças. Já a pesquisadora Dea Maržić, em The Linguistic Anatomy of a Villain: a discourse of villainy (2019), investiga como a linguagem e os discursos sobre vilania frequentemente recaem sobre sujeitos vistos como desviantes da norma branca, cisgênera e eurocentrada.
Ainda assim, Jonas Maria reconhece que o queer coding pode ter um uso estratégico, especialmente em contextos onde representações explícitas continuam sendo vetadas. Um caso notório é o personagem Ryan Evans, da franquia High School Musical (2006). Embora nunca se declare gay nos filmes, Ryan é amplamente reconhecido como queer por sua performance. Em 2020, o diretor Kenny Ortega confirmou que o personagem era, sim, um adolescente gay, mas que não pôde se assumir devido à postura conservadora da Disney na época. Ryan, nesse caso, exemplifica como o queer coding pode também abrir brechas para identificação positiva por parte de jovens espectadores LGBTQIA+.
Por outro lado, Jonas alerta para os riscos: quando a codificação queer é usada de forma caricata, negativa ou associada à vilania, acaba por reforçar estigmas e alimenta o preconceito sociai contra corpos dissidentes. A linha entre estratégia e estereótipo, portanto, é tênue — e seu impacto depende tanto da intencionalidade narrativa quanto da leitura crítica do público.
A temática que atravessa este artigo encontra uma de suas expressões mais simbólicas no universo da ficção gótica, especialmente na figura do vampiro. O Prof. Dr. Andrio J. R. dos Santos, da Universidade Federal de Santa Maria, apresentou um seminário intitulado "O vampiro na ficção gótica queer: tensões entre sexualidade e heteronormatividade", no qual examina como o mito literário do vampiro está historicamente alinhado à representação de sexualidades dissidentes.
A partir da introdução da obra The Blood is the Life: Vampires in Literature (1999), Andrio destaca comentários de Leonard Heldreth e Mary Pharr sobre como o vampiro, que é essa figura dúbia, ao mesmo tempo morta e viva, encarna o limiar entre o sancionado e o tabu, especialmente no que diz respeito ao erotismo e à homoafetividade. Sua imagem ocupa um espaço de tensão em que homossexualidade e homoerotismo se chocam contra heteronormatividade e conservadorismo.
O material de seu seminário traça um panorama histórico que parte dos textos clássicos do século XIX, como O Vampiro (1819), de John Polidori, Varney, o Vampiro; ou, O Banquete de Sangue (1845), de James Malcolm Rymer, e Carmilla (1872), de Sheridan Le Fanu, até as Crônicas Vampirescas (1976 – presente) de Anne Rice, e obras mais modernas como as de Poppy Z. Brite e Charlaine Harris, que consolidam o vampirismo como metáfora potente para identidades queer.
“[…] tanto a arte abjeta quanto a grotesca têm sido veículos poderosos para os artistas expressarem críticas, frustrações ou protestos contra normas sociais opressivas ao longo do século XX” — Audrey Howell (Claremont Graduate, 2014).
De tempos em tempos, a literatura absorve e transforma as ondas narrativas que emergem de outras mídias. Um exemplo notável disso é a ascensão do Noir Queer, uma vertente que tem ganhado espaço nas narrativas contemporâneas ao reinterpretar os códigos do noir sob uma ótica dissidente. Para entender esse movimento literário, é preciso voltar ao cinema, mais precisamente ao surgimento do neo-noir, que floresceu após a queda do Código de Produção de Hollywood. A flexibilização da censura permitiu que os filmes explorassem zonas mais ambíguas, com violência gráfica, tensão sexual e dilemas morais sombrios. No entanto, apesar de um novo apelo estético, muitos desses títulos apenas reciclavam a erotização das relações de gênero presentes no noir clássico, sem desafiar de fato os padrões cis-heteronormativos.
Com os grandes estúdios ainda relutantes em representar personagens LGBTQIA+, foi o cinema independente dos anos 1990, especialmente o New Queer Cinema, que assumiu a tarefa de romper com a normatividade. Ainda assim, o Noir Queer tão desejado, não alavancou realmente nas telas como se esperava. É na literatura, mais livre das amarras comerciais e mais aberta à experimentação formal e temática, que essa estética começa a florescer de maneira plena. Nos livros, personagens queer deixaram de habitar as margens para ocupar o centro das tramas: não apenas como vítimas ou coadjuvantes trágicos, mas como investigadores, criminosos, justiceiros, fantasmas e criaturas sobrenaturais. Nesse novo corpo literário, arquétipos como o detetive solitário e a femme fatale são desconstruídos, tensionados e reapresentados à luz de outras corporalidades, desejos e geografias.
Nesse contexto de reinvenção, vale destacar o trabalho de Lucas Santana, autore que escreve thrillers, horror e fantasia sombria a partir de uma perspectiva queer e nordestina, mergulhando no estranho que habita o real. Em O Silêncio no Mangue (2024), Lucas propõe uma releitura ousada do gênero noir ao transportá-lo para uma cidade nordestina cercada por manguezais com drag queens e travestis ocupando o centro da narrativa. A trama parte da descoberta do corpo de uma drag queen famosa nas águas turvas do mangue e segue um investigador perturbado por traumas antigos, em uma espiral de investigação, crítica social, terror e protagonismo LGBTQIA+.
Esse gesto de ruptura é o que caracteriza o noir queer, conceito que Lucas ajuda a desenvolver em sua prática literária. O noir queer desloca o olhar imperialista, cis-heteronormativo e misógino tradicionalmente associado ao noir, e rompe com os arquétipos cristalizados dando lugar a personagens LGBTQIA+ que vivem a marginalidade. Aqui, discute-se o desejo de vingança, a revolta e o protagonismo. “Gays empinando moto e travestis explodindo coquetéis molotov na delegacia”, como escreve Lucas. O crime envolve a comunidade queer, que não aparece como vítima passiva, mas como agente da narrativa.
Em Sangue Raro (2025) Lucas radicaliza ainda mais essa estética do estranho com um universo de fantasia política. A história se passa em um Brasil devastado pela feitiçaria e por uma ditadura. Nos é apresentado um cenário onde um sangue puro, usado como arma pelo regime, finalmente escapa, e, ao fazer uma aliança poderosa precisa decidir entre a culpa pelo passado ou a vingança contra aqueles que destruíram seu mundo. No centro da narrativa está ume bruxe não-binárie, que mora em um manguezal, um portal mágico no meio de um Quilombo e fantasias de carnaval enfeitiçadas. Aqui, novamente, a literatura queer supera a ideia de simples presença simbólica.
“Não se trata apenas de representatividade. Não é colocar um personagem LGBTQIA+ aqui e ali e chamar de história queer. São pessoas queer assumindo suas próprias narrativas. São os vilões, os mocinhos, os monstros, os salvadores, os algozes, as vítimas. Afinal, queer não é apenas um traço de personalidade, mas algo que perpassa todos os aspectos da nossa vida” – explica Lucas Santana
Santana também destaca A trama da morte (2023), seu livro publicado pela editora Corvus, que também mistura sobrenatural com noir. Ambientado no Recife, o livro acompanha uma drag queen com o dom de ver espíritos, que se vê envolvida em uma série de assassinatos paranormais. Para impedir que o véu entre o mundo dos vivos e dos mortos se rasgue de vez, ela precisa colaborar com a polícia e desvendar os crimes.
Entre as referências que considera essenciais para o noir queer brasileiro, Lucas Santana indica Exorcismos, amores e uma dose de blues (2014), de Eric Novello. A narrativa se desenrola em um universo paralelo, um "reflexo" do nosso mundo, onde seres etéreos, oníricos e feéricos coexistem com humanos. Nesse cenário fantástico, a cidade de Libertà, inspirada em São Paulo, é o pano de fundo para a jornada de Tiago Boanerges, um protagonista em busca de redenção. Para isso, ele precisa concluir um trabalho mal resolvido do passado. Mas o caminho é tortuoso: reencontrar um antigo amor que lhe custou não apenas a carreira, mas também o coração. Antes, porém, será preciso exorcizar seus próprios fantasmas se não quiser falhar mais uma vez e ver sua vida destruída para sempre.
Obras como essas provam que o noir não precisa se limitar às ruas de Nova York ou Los Angeles. Pode ser reinventado em territórios do sul global, em geografias inventadas ou atravessadas por outras lógicas culturais, sempre com potencial para falar de corpos dissidentes e questionar estruturas de poder. “Noir com glitter”, como brinca Lucas Santana, e é exatamente isso, um gênero que brilha cada vez mais.
Pelo que podemos compreender, escrever literatura queer, hoje, é também uma forma de reivindicar espaço num cenário literário ainda marcado por silenciamentos, exclusões. Mais do que simplesmente incluir personagens LGBTQIAP+ em papéis centrais, trata-se de explorar suas complexidades, dores, afetos e contradições. É também sobre bagunçar um pouco as regras, mexer na forma como as histórias são contadas, escapar do tradicional e dos clichês que a gente já conhece de cor. Porque quando essas vozes entram em cena de verdade, tudo pode (e deve) ser reimaginado.
Aproveito para destacar outro texto publicado em minha newsletter: O Amor que contamos ainda é o mesmo?, que investiga as transformações da literatura romântica no século XXI. Embora o artigo aborde o panorama geral das mudanças no gênero, em sua parte final, mergulho na perspectiva queer, com ênfase nas narrativas que emergem desse viés e ampliam o espectro afetivo da literatura contemporânea. São histórias que incluem personagens LGBTQIAP+ em enredos que desafiam os moldes tradicionais do amor romântico. Autores independentes, muitas vezes publicados de forma autônoma em plataformas como a Amazon Kindle, têm sido fundamentais nesse processo. Obras como Ela, Videogames e muito sobre nós, de Koda Gabriel, Sobre Namoradas e Lobos, de Marina Feijóo, e Entre Beijos e Flechas, de Vanessa Freitas, trazem protagonismos não-binários, trans, sáficos e queer de modo geral, em enredos que misturam romance e fantasia. O artigo também ressalta a importância de histórias que abordam identidades arromânticas, assexuais e demissexuais, como A Caminho de Casa, de May Barros, ampliando a compreensão sobre afeto e pertencimento para além do amor romântico, por meio de conexões queerplatônicas e relações significativas.
Entre os autores brasileiros que tratam a literatura queer como um território fértil para romper padrões e reinventar narrativas, Dan Bernardino, destacando-se por sua escrita afiada dentro dos gêneros do terror e do suspense, com protagonismo LGBTQIAP+ como eixo central de suas histórias. Escritor independente, Dan não apenas insere personagens dissidentes em seus enredos: ele constrói universos em que suas identidades moldam suas trajetórias, dilemas e resistências.
“Me relaciono de forma extremamente pessoal com o queer porque sou um homem gay. Então, para mim, o queer vai além da sexualidade; está na forma como a gente se expressa, como fala, pensa e vive. Não trabalho os personagens apenas apontando que um é gay ou que outro é trans. O que me interessa é mostrar como essas vivências moldam quem eles se tornam e como suas experiências formam seus caráteres.”
Essa dimensão vivencial se concretiza em obras como Primavera dos Mortos, Agonia, Princesassauro e O Garoto, o Portal e o Anjo. Nelas, Dan dá protagonismo a figuras que a cultura de massa costuma relegar aos papéis secundários ou descartáveis. “Penso em pessoas que seriam coadjuvantes e morreriam primeiro em produções mais midiáticas. Então eu crio meus personagens para representarem minorias de forma que não seja só o melhor amigo gay ou a lésbica alívio cômico.”
Um exemplo emblemático disso é Marcele, personagem de Primavera dos Mortos, uma travesti que, em meio ao apocalipse zumbi, treinou para ser uma máquina de matar. Seu corpo dissidente aqui é colocado como símbolo de sobrevivência. Ao transportar essas experiências para os gêneros do horror e do fantástico, Dan desafia não só as representações hegemônicas da cultura pop, mas os próprios limites desses gêneros, tradicionalmente dominados por protagonismos cis-heteronormativos.
Sobre sua escolha estética, o autor comenta que escrever terror é, para ele, uma forma de expressão visceral, o horror se torna uma ferramenta catártica, uma forma de sublimar experiências reais de exclusão e violência. “É crítica, desabafo. É realmente descarregar toda a dor de ser uma pessoa queer num país conservador. Então eu posso criar personagens que me representam e fazer esses personagens vencerem, mesmo que de forma alegórica, o verdadeiro mal do mundo que é o preconceito.” diz Dan Bernardino.
Outra voz contemporânea que dialoga com a literatura queer a partir de uma perspectiva estética e existencial é a escritora MJ Luna. Estudante de Letras e autora da trilogia Elísia, composta por Morte Vetada (2024), Morte Lograda (2024) e Morte Onerada (2025), além do livro Através dos Olhos Escarlates (2024), Luna trabalha com fantasia sombria, horror psicológico e elementos do grotesco para questionar padrões normativos e tensionar o conceito de beleza, identidade e pertencimento.
“Eu me entendia escritora muito antes de me entender por pessoa queer, e por isso se supõe que nesse período meus livros já seriam diferentes, mas não eram, pois ainda me faltava o movimento consciente. Hoje eu subverto padrões de propósito, até por questão de responsabilidade mesmo”.
A literatura, para MJ Luna, não é apenas um espaço de criação, mas também de autoconhecimento. Ela cita A Mão Esquerda da Escuridão (1969), de Ursula K. Le Guin, como uma das obras que a fez questionar o gênero, pois é uma escrita que levanta diversas reflexões sobre o que é ser homem ou mulher e o peso disso na sociedade.
Outro ponto importante foi o personagem Alex, do livro Magnus Chase (2015), de Rick Riordan, como o primeiro personagem trans que ela viu num livro. “Eu tinha 18 anos na época e lembro que me senti extremamente confortável em ver aquela pessoa ali, abraçada e encontrando amor no mundo.” Essa experiência atravessa diretamente seus próprios personagens, como Ettore, trans masculino, em Morte Vetada, ou Adramalek, um ser não-binário, em Através dos Olhos Escarlates. Ao construir suas narrativas, Luna opta por personagens que se encontram fora das normas
“Sempre quis escrever livros sobre gente excluída, que não se sentia parte do todo ou sequer se sentiam humanos de verdade, e pra mim o queer tem muito disso. A estranheza, a subversão, até o não-pertencimento que enfrentamos dentro da sociedade que tenta impor padrões onde não nos encaixamos.”
Sua escrita mexe em dinâmicas afetivas e corporais para desafiar convenções, como ao retratar casais com diferenças físicas e hierarquias de dominação em contextos BDSM, nos quais todos os personagens mantêm livre agência. “Através de Olhos Escarlates aborda isso até o fim: É sobre duas pessoas fora do padrão de beleza vigente, cheios de cicatrizes”, comenta.
MJ Luna afirma que sua escrita parte de um impulso de subversão: ela se interessa por desmontar padrões como a família nuclear e hierarquias patriarcais, transformando-os em elementos abjetos e sedutores, onde a beleza reside justamente naquilo que a cultura dominante costuma considerar como “feiúra” moral. Ao lidar com temas sensíveis, a autora se apoia em pesquisa rigorosa e em leitura sensível, para garantir responsabilidade e respeito à diversidade representada. Morte Vetada, por exemplo, contou com a leitura sensível de um homem trans, e um futuro livro ambientado no mesmo universo terá acompanhamento de uma leitora com conhecimento em questões étnico-raciais. Para MJ Luna, há temas considerados problemáticos que não deveriam ser evitados na ficção, mas sim tratados com consciência e contextualização. “Trago violências que me atingem para os livros. A questão é sempre a caracterização e contexto”, explica, reforçando que não se furta a representar personagens queerfóbicos, desde que o tratamento literário respeite a complexidade das vivências e o impacto simbólico dessas presenças.
A escritora comenta que já compararam seu estilo narrativo ao eroguro japonês, embora ela mesma brinque chamando suas histórias de “sexo creepy”, em tom bem-humorado. Apesar de algumas cenas gráficas e atmosferas perturbadoras, MJ Luna esclarece que suas obras não se encaixam inteiramente nas convenções do gore, gênero que, segundo ela, possui uma estética própria e muito mais visceral. Suas influências dialogam com esse universo, mas o foco está mais no terror psicológico, elemento recorrente em seus textos, e na construção de uma fantasia sombria que combina referências ao gótico, temas grotescos, fantasia e intensos conflitos morais.
Já Helena Zamparette, que também conversou brevemente com o Portal Cataprisma, investe na literatura queer como linguagem poética e território de assombro. Nascida no sul de Santa Catarina, Helena é produtora de conteúdo, escritora e apaixonada por horror desde criança. Sua estreia na poesia se deu com o livro Travesseiro Manchado (Editora Folheando, 2024), uma coletânea poética atravessada por afetos e dores de uma mulher que ama mulheres. Mas é no horror que a escritora encontra seu principal campo de experimentação narrativa. Ela afirma que “nunca escreveu nenhuma história que não fosse queer”, e enxerga no horror um território genuinamente transgressor, que carrega em sua essência a dissidência.
“Acredito que o horror de uma forma geral é queer, porque é um gênero à margem da sociedade e do que é aceito, e nele podemos explorar diversas formas de representações”
Na antologia LGBTerror, publicada pela Editora Diário Macabro em 2024, Helena assina o conto Camilla, em que o texto revisita a dor de uma rejeição familiar causada pela sexualidade e os traumas que permanecem na casa onde se retorna. Além de escritora e poeta, Helena também atua como organizadora editorial. Ao lado do escritor Andrio J. R. Santos, já citado neste artigo, ela organizou a antologia VamQueer, que reúne narrativas LGBTQIA+ atravessadas por meio da figura do vampiro e suas múltiplas simbologias literárias. A coletânea propõe uma leitura expandida da tradição vampírica, entrelaçando brasilidades, sexualidades não normativas e desejos intimamente humanos. Além de co-assinar a introdução, Helena também contribui com um conto-homenagem à clássica vampira Carmilla, de Sheridan Le Fanu.
Como vimos até aqui, a literatura queer nasce das vísceras das vivências LGBTQIAP+ e, por isso, encontra afinidade natural com tudo que incomoda: o feio, o bizarro, o que a norma tenta varrer pra debaixo do tapete. Essas narrativas também desmontam as ideias de normalidade que por tanto tempo sustentaram estigmas e exclusões. Ao subverter gêneros o queer desafia o status quo e, por isso, este texto carrega o título “A contravenção da norma na Literatura Queer”.
Nossos autores brasileiros não estão à margem desse movimento, estão no centro dele, criando o novo, ressignificando o existente e transformando clichês em novas possibilidades estéticas. Ao longo deste artigo, apresentei algumas dessas trajetórias e nomes que merecem ser acompanhados de perto, por sua contribuição constante e criativa ao cenário da literatura queer contemporânea. E a conversa está longe de acabar. Se você conhece mais autores, projetos e histórias que dialogam com essa perspectiva, estou aberto a descobertas.
Adoraria receber mais indicações.
Para montar esse artigo, conversei com autores de literatura queer selecionados, busquei a opinião de leitores em fóruns na internet e troquei ideias com usuários do Bluesky, Twitter, Threads e Reddit. Além disso, fiz uma boa pesquisa em sites como Revista Recorte, Scholarship, Monstrumology, UFSM e New York Times, para garantir que as informações estivessem bem embasadas.
Artigo por Filipo Brazilliano
Revisão por Luciana Cunha Pereira
Que artigo excelente! A parte sobre elementos queer estarem associados à vilania, em especial, me fez refletir sobre minhas próprias obras. Sem querer, eu acabei fazendo o contrário e escrevendo vilões com elementos associados à heterossexualidade. Acho que aconteceu de forma natural porque eles estão em oposição aos meus protagonistas, que são bem queer-coded. Eu só notei quando uma pessoa hetero leu o livro e me perguntou por que todos os meus personagens heterossexuais eram do mal, haha.
Ótimo texto. Percebo que uma literatura queer inverte certas hierarquias simbólicas, né, como se antecipasse (e por isso mesmo subvertesse) o olhar. É utopia performativa, como escreveu o José Esteban Muñoz: o queer é performativo pq não é simplesmente um ser, mas um fazer, por e para o futuro.